A cozinha do Sítio do Pica-Pau Amarelo é uma das mais representativas da gastronomia brasileira presente na Literatura. José Bento Monteiro Lobato (1882/1948) foi um apreciador da boa mesa e levou a culinária da roça para as páginas de seus livros. Inspirado na obra de Monteiro Lobato, o quinto jantar do projeto Da Estante à Mesa: Literatura e Gastronomia, no dia 26 de maio de 2017, teve como chefs Elisa Prenna e Matias Moreno, do restaurante Chica Fundó.
Mesmo que hoje os livros de receitas e outros produtos de cozinha façam referência a Dona Benta, na ficção, era tia Nastácia que comandava a cozinha do Sítio. Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, seus netos Pedrinho e Narizinho, a boneca Emília e o Visconde de Sabugosa estão sempre confraternizando à mesa ou, quando voltam de suas aventuras, buscam confortam nos quitutes de tia Nastácia.
O autor
Nasceu José Renato Monteiro Lobato, em Taubaté, interior de São Paulo. Depois, trocou o nome para José Bento, como ficou conhecido. Foi defensor da cozinha tradicional, principalmente a do Vale do Paraíba, onde nasceu. A coerência da postura nacionalista do escritor refletia-se, de fato, no dia-a-dia de sua mesa, e ainda nos hábitos alimentares de seus personagens de ficção. Sintonizado com os modernistas da Semana de 22, foi um crítico ferino dos hábitos gastronômicos afrancesados da elite ilustrada paulistana.
Com a vontade de transformar o Brasil em um país desenvolvido e próspero, Lobato propunha já naquela época a exploração de plantas e frutas nativas, a valorização da culinária e dos ingredientes nacionais. Como adido comercial em Nova York, de 1927 a 1930, chamou atenção para o potencial econômico de produtos como o coco babaçu. Via no caju uma importante fonte de renda para o Brasil. Pregava o uso da fruta para elaboração de vinho, concorrendo com a uva.
Para fazer frente aos “pratos boniteza”, “para comer com os olhos”, servidos no casamento de Branca de Neve, como faisão recheado de línguas de rouxinol, javali assado o molho de néctar furtado aos deuses do Olimpo e omelete de ovos da fênix, Tia Nastácia oferecia “pratos gostosura”: mocotó à baiana, bem apimentado, quibebe e costela com angu de fubá.
A mesa do autor
Enquanto a elite esnobe pretensamente afrancesada servia receitas com ingredientes brasileiros batizados com termos franceses, Lobato ensinava na literatura infantil que a culinária nacional “é a mais saborosa do planeta”.
Para o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, o içá – tira-gosto muito popular no Vale do Paraíba, feito com saúva torrada com sal – era o verdadeiro caviar, o néctar dos deuses. Se hoje Alex Atala e outros chefs renomados servem formiga nos menus-degustação e parece uma novidade, vale lembrar o gosto de Monteiro Lobato que, já em 1903, degustava as fêmeas das saúvas – caçadas na fase do acasalamento, no alto verão, quando saem em revoada, torradas com sal – enquanto escrevia.
Adepto do leitão à pururuca, do picadinho e da feijoada, apreciava a comida que nutre e sustenta. Bolinhos de chuva, biscoito de polvilho, sequilhos, curau, canjica e paçoca eram os quitutes de roça preferidos. Estudiosos contam que Lobato ajudava a mulher, Purezinha, a costurar saquinhos de palha de milho para acondicionar a pamonha de que era fã incondicional. Não dispensava goiabada cascão, sagu com vinho tinto, doce de leite talhado, casca de laranja cristalizada, banana frita e bolo de fubá. Sem falar na rapadura, que picava em pedacinhos e colocava no bolso para ir mastigando durante o dia. No café da manhã, gostava de comer farinha de mandioca ou de milho misturada com café preto e açúcar. No almoço ou jantar, servia-se de feijão com farinha, carne moída com quiabo, picadinho, chuchu e abobrinha. Tudo cozido em toucinho de porco derretido.
O Brasil
Dona Benta representa a formação cultural europeia, tão valorizada à época, enquanto tia Nastácia é a detentora do saber popular e da tradição oral.
Quando Monteiro Lobato escreveu as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, entre 1920 e 1947, as avós da elite brasileira não iam para a cozinha. Esse lugar era das negras lançadas na pobreza com a Abolição da Escravatura. Enquanto Dona Benta é o símbolo do conhecimento erudito, Tia Nastácia é o popular. Enquanto uma fala de Mitologia grega, a outra conta o folclore brasileiro.
Na contramão da época, de uma sociedade machista, Dona Benta representa a força e independência da mulher que se fortalece com o conhecimento adquirido nos livros.
Na obra
“Numa casinha branca, lá no sítio do Pica-Pau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
— Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto…
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas — Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem. Narizinho tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos”. Reinações de Narizinho
“E as duas velhas olhavam uma para a outra, sacudindo a cabeça. Narizinho não gostava de esperar; ficou pois aborrecida de ter de esperar Pedrinho ainda uma semana inteira. Felizmente era tempo de jabuticabas.
No sítio de Dona Benta havia vários pés, mas bastava um para que todos se regalassem até enjoar. Justamente naquela semana as jabuticabas tinham chegado “no ponto” e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia trepava à árvore, que nem uma macaquinha. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço fora. E tloc, pluf, tloc, pluf, lá passava o dia inteiro na árvore”. Pica-Pau Amarelo
“E a negra cheirou a sardinha frita, e depois a provou, e ficou com água na boca, e comeu-lhe um pedacinho, e disse, arregalando os olhos:
– Bem gostosinha, Sinhá. Prove… Muito melhor que esses lambaris aqui do rio…
Dona Benta recusou e tia Nastácia, ainda com lágrimas, acabou comendo a sardinha inteira”. Reinações de Narizinho
No banquete oferecido por Branca de Neve ao Gato de Botas. No livro Fábulas, cita a carne seca desfiada com angu de farinha de milho, suã de porco com torresmo, mandioquinha frita, lombo com farofa, cuscuz e cambuquira
“E há cocadas? – quis saber o Gato Félix.
– Cocadas só no intervalo – respondeu Emília – São de três qualidades. Umas brancas como neve, outras cor-de-rosa como rosa cor-de-rosa, outras queimadinhas como rapadura. Tia Nastácia é uma danada para toda sorte de doces e quitutes”. Reinações de Narizinho
Sobre leitões: “Os bobinhos ouvem e vêm correndo atrás do milho que ela começa a debulhar, e comem, comem, comem. De repente a malvada se abaixa e – nhoque! – segura pela perna o tal ‘aquele um’. E pode o coitadinho espernear e berrar quanto queira! Não tem remédio. Vai arrastando para a cozinha, onde é assassinado com uma faca de ponta. E se fosse só isso! Depois de assassinado é pelado com água fervendo, é destripado, temperado e, afinal, assado no forno. Na hora do jantar reaparece na mesa, mas muito diferente do que era. Vem num grande prato, rodeado de rodelas de limão, com um ovo cozido na boca. E ninguém lamenta a sorte do coitadinho. Todos tratam mas é de cortar o seu pedaço e comê-lo gulosamente”. Reinações de Narizinho
“Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis cocadas, seis pés-de-moleque e uma rapadura, doces mais que suficientes para uma festa em que quase todos os convidados iam comer de mentira”. Reinações de Narizinho
“Tia Nastácia faz desses doces em quantidade, e de todas as cores e gostos. Há um amarelo, chamado de ‘doce de abóbora’, que é muito bom. Há um roxo chamado ‘doce de batata’. Há as cocadas, que são branquinhas como a neve”. Viagem ao Céu
“Pimenta, Sinhá? É o que está me fazendo falta hoje. Acabou-se aquela do vidro de boca larga e não sei como me arranjo com o vatapá de amanhã.
Dona Benta ficou com preguiça de explicar e deu-lhe ordem de fazer o vatapá sem pimenta.
-Ché! Fica sem graça, Sinhá. Feijão sem sal, vatapá sem pimenta e café requentado, é jantar estragado”. Fábulas
Emília, a irreverente e espevitada boneca de pano recheada de macela, foi criada pelas mãos de Tia Nastácia e dizia que a única razão que via para querer se tornar humana era provar a gemada preparada pela cozinheira: “É amarelinha, e parece aveludada”, explica.
Cozinha regional
As cozinhas regionais brasileiras estão presentes na obra de Monteiro Lobato, principalmente no livro Geografia de Dona Benta.
“Estou com remorso de gostar tanto de picadinho de carne seca com pirão – disse a menina – Agora é que sei donde vem tal petisco…”. Geografia de Dona Benta
“Por que falar em pinhão, vovó? – murmurou o Imediato, engolindo em seco. _ Gosto tanto de pinhão cozido”. Geografia de Dona Benta
“O almoço hoje é só virado de feijão com torresmos e uma fritada de sardinha – disse ela”. Geografia de Dona Benta
“Uma garoupa, e das grandes! Vou fazê-la recheadinha com farofa e azeite de dendê. Tia Nastácia tinha se aproveitado da passagem pela Bahia para comprar várias garrafas de azeite de dendê, que as cozinheiras de lá usam como tempero. E lá se foi ela para a cozinha, toda risonha, com o belo peixe seguro pela guelra vermelha, a rabear”. Geografia de Dona Benta
“Pirarucu seco, latas de manteiga de tartaruga e bastões de Guaraná fabricados pelos índios Maués. Também comprou várias latas dum doce excelente, feito de uma fruta selvagem de nome buriti.
– Isso para sorvete não há nada melhor – disse ela”. Geografia de Dona Benta
Os famosos bolinhos
Os bolinhos de Tia Nastácia talvez sejam a receita mais famosa da literatura infantil de Monteiro Lobato. Quando a cozinheira não queria perder as conversas de Dona Benta com os netos, levava uma gamela com a massa dos bolinhos para enrolar na sala de jantar. Os bolinhos aparecem em diferentes obras.
Citados por Pedrinho, em O Saci, “quem comia uma vez os seus bolinhos de polvilho não podia nem sequer sentir o cheiro de bolos feitos por outras cozinheiras”.
Em Viagem ao Céu, Nastácia conta das comidinhas que havia preparado para São Jorge: “Coitado – suspirou a cozinheira – santo bom está ali. E é um bom garfo, sabe? Comeu uma panqueca que eu fiz e lambeu os beiços que nem o dragão. E para comer bolinhos não há outro.”
“Chegou, afinal, o grande dia. Na véspera, viera para Dona Benta uma carta de Pedrinho que começava assim: ‘Sigo para aí no dia 6. Mande à estação o cavalo pangaré e não se esqueça do chicotinho de cabo de prata que deixei pendurado atrás da porta do quarto de hóspedes. Narizinho sabe. Quero que Narizinho me espere na porteira do pasto, com Emília no seu vestido novo e Rabicó de laço de fita na cauda. E tia Nastácia que apronte um daqueles cafés com bolinhos de frigideira que só ela sabe fazer”. Reinações de Narizinho
Os famosos bolinhos da Tia Nastácia conquistam até o Minotauro, figura mitológica grega que tinha cabeça e cauda de touro em corpo de homem e se alimentava de seres humanos. Sequestrada pelo monstro durante o casamento de Branca de Neve com o príncipe, a cozinheira fica tão nervosa que começa a fazer bolinhos para se acalmar. Atraído pelo aroma dos petiscos, o Minotauro prova os bolinhos, se encanta com o sabor e liberta Tia Nastácia sob a condição de ela preparar centenas de bolinhos antes de partir.
“E é mesmo bom, vovó! – disse a menina, – Aqueles bolinhos de bacalhau que tia Nastácia fazia lá em casa, poderá haver coisa melhor? Só de falar já fiquei de água na boca”. Geografia de Dona Benta
Herança culinária
Dona Purezinha, esposa do escritor, mantinha um caderno de receitas com os pratos preferidos de Monteiro Lobato. Um garimpo nessas receitas e na obra do autor, por Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, resultou no livro À Mesa com Monteiro Lobato, que reúne 64 pratos.
Cozinha da roça
Algumas das delícias citadas por Monteiro Lobato:
farofa de torresmo
quiabo com carne
canjiquinha com linguiça
bolinho de milho com carne
bolo de fubá
bolinho de chuva
biscoito de polvilho
virado de feijão com torresmo
pamonha
canjica
leitão à puruca
doces de frutas
café preto passado
curau
paçoca
JANTAR
Couvert 1 – Pão com patê especial, com espumante Lídio Carraro Faces, da Serra Gaúcha.
Couvert 2 – Os bolinhos de Tia Nastácia, e seus inúmeros sabores, fizeram sucesso até com o Minotauro. Para homenagear a cozinheira, bolinhos de bacalhau, ainda com o espumante Lídio Carraro Faces, do Brasil
Entrada – O Visconde de Sabugosa esteve representado no creme de milho com puxadinho de pinhão, linguicinha e funcho. Para acompanhar, espumante Lídio Carraro Faces, do Brasil
Principal – Comidinha confortante, da fazenda, com o nhoque de batata doce e ragu de rabada, harmonizado com o vinho Las Moras Malbec, da Argentina
Sobremesa – Os doces de Tia Nastácia trio de gostosuras do sitio: nuvem de goiaba + delícia de coco + cremoso de leite. A harmonização ficou por conta do vinho de sobremesa português José Maria da Fonseca Alambre.
Encerramento – Café passado com broa de milho
Quitanda
Os sequilhos são uma tradição brasileira na hora de acompanhar o café ou servir às visitas. Aqui vai uma receita de sequilho da roça, com fubá. O toque diferente e mais sofisticado foi dado com a incorporação do cardamomo em pó. Isso porque, preciso confessar, não sou grande apreciadora da erva doce, que seria o condimento mais adequado para deixar os sequilhos com sabor da roça. Fique à vontade para utilizar o que preferir.
Sequilho de fubá
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50g de fubá fino
150g de maisena
50g de azeite de oliva
1 ovo
50g de açúcar
20g de açúcar mascavo
1 pitada de sal
1 colher (chá) de leite
1/4 colher (chá) de cardamomo em pó
1/2 colher (chá) de fermento em pó
açúcar confeiteiro para polvilhar
Como Fazer
- Preaqueça o forno a 180 graus.
- Em uma vasilha, misture a maisena, o fubá, o açúcar, o açúcar mascavo, o cardamomo e o sal.
- Adicione o ovo, o leite e o azeite.
- Acrescente o fermento em pó e amasse até ficar uma massa homogênea.
- Manuseie só o necessário.
- Modele bolinhas de cerca de 10g.
- Em uma forma com silpat ou papel manteiga, distribua as bolinhas, deixando um espaço entre elas.
- Leve ao forno até que as bordas comecem a dourar.
- Retire, deixe amornar.
- Polvilhe, ainda mornos, com açúcar de confeiteiro.
Notas
* Para ter bem o sabor da roça, substitua o cardamomo por erva doce.