Quem lembra daquelas nuvens de açúcar colorido que eram preparadas nos parques da cidade? Eram algodões doces cor de rosa, azuis, verdes, roxos, sempre em cores fortes, que faziam a alegria da garotada. O passeio e as brincadeiras nas praças terminavam em rostos lambuzados e colocados com pedaços de algodão formado por fios de açúcar.
Não sei se por conta da preocupação com o consumo excessivo de açúcar ou se por simples mudança de hábito, raras vezes tenho visto carrinhos de algodão doce nas praças. E, quando os vejo, poucas são as crianças que desfilam com as nuvens de açúcar presas em longos palitos de madeira ou plástico.
Na minha infância, era uma diversão parar ao lado do carrinho e ver o vendedor manejar com destreza os palitos que iam recebendo os finos fios coloridos, até que formassem um chumaço tão grande e fofo que pareciam que iam voar. As crianças de hoje podem ir às lojas de brinquedos e adquirir as pequenas máquinas de preparar algodão de açúcar colorido. Mas os pais parecem temer que seus filhos abusem no consumo do doce e poucos se interessam em presentear os filhos com elas. Acho que o algodão doce está ameaçado de extinção.
abril 2018
Passei a minha infância morando em casas, apesar de em diferentes capitais. Por isso, fazem parte de minhas lembranças as festas juninas, com direito a fogueiras e tudo mais. A vizinhança se reunia e oferecia às crianças amendoim carapinha (aqueles cobertos com açúcar), pé de moleque, quentão, pipoca, pamonha, milho verde e tantas outras delícias. Eram feitas festas na rua em que morávamos e também na escola. Lá, eram mais sofisticadas , inclusive com brincadeiras como quadrilha, cadeia e pescaria. Os brindes dessas brincadeiras não importavam, o divertido era participar.
Atualmente, a tradição junina está desaparecendo. Talvez porque a vida nas grandes cidades tenha mudado bastante. Os vizinhos quase não se conhecem, e as crianças pouco saem de casa para programas conjuntos nas ruas. Algumas escolas ainda fazem sua festas, mas geralmente abrem mão da fogueira e das brincadeiras. Determinadas receitas, como pamonha e canjica, parecem esquecidas. E, em tempo de dietas e controles alimentares, nem mesmo o pé de moleque, a paçoquinha, a carapinha e a pipoca coberta de chocolate conseguem muitos adeptos. Mudanças dos tempos.
A noite prometia muita emoção. Afinal, pela primeira vez faria uma apresentação do projeto Da Estante à Mesa: Literatura e Gastronomia, com a presença de um autor. E mais: falando também sobre a obra do pai desse autor. E, como previsto, a noite foi emocionante. O chef Marcos Livi mostrou toda a sua criatividade ao colocar à mesa pratos inspirados na minha pesquisa sobre as obras de Erico Verissimo e Luis Fernando Verissimo, superando todas as expectativas. Luis Fernando e Lúcia nos honraram com a presença. E Pedro Verissimo, o filho do casal, encantou a todos com a apresentação musical. O jantar, no dia 12 de abril de 2018, no Instituto Ling, é inesquecível.
ERICO VERISSIMO
O autor
O autor gaúcho nasceu em Cruz Alta, em 1905 e faleceu, em Porto Alegre, em 1975. Suas principais obras foram adaptadas para o cinema e a televisão.
A obra
As narrativas ficcionais de Erico Verissimo fazem não só um passeio cronológico pela história do Rio Grande do Sul como, principalmente em O Tempo e o Vento, também mostram uma cronologia dos sabores da cozinha gaúcha, desde a rusticidade da mesa na época da missão de São Miguel até o refinamento através dos tempos. A saga da família Terra e Cambará pode ser vista como registro da cultura, história e gastronomia do Estado.
Os efeitos das constantes guerras em defesa das fronteiras no Sul do país e das guerras civis entre chimangos e maragatos são retratados também à mesa dos gaúchos em O Tempo e o Vento. Da rusticidade ao requinte, da escassez à fartura, a cozinha é palco para a construção de sabores e de viagens pela formação da culinária do Rio Grande do Sul.
A cozinha do autor
Erico gostava de cozinhar um prato inventado por ele, um arroz chinês que fazia nos Estados Unidos, nas décadas de 40 e 50.
Mesa rústica
No princípio dos tempos, as limitações da época impunham uma alimentação restrita a carne de charque, farinha de mandioca, abóbora e feijão preto. Para adoçar, rapadura.
“Os homens enganam o estômago com pequenas porções de charque, farinha de mandioca e rapadura; matam a sede com caldo de laranja. O pior de tudo é a falta de leite e pão para as mulheres e os meninos”. Continente vol.1
“Um tropeiro viaja, vê muitos povoados e vilas e gente por este mundo velho. E pensando nisso, Rodrigo de repente sentiu vontade de comer arroz-carreteiro. Continente vol.1
O churrasco
“Hoje é noite de São João. Na mente de Maria Valéria está acesa uma grande fogueira, crianças saltam por cima, alguém assa uma batata doce na ponta de uma vara. Sobre o braseiro o churrasco chia, a graxa pinga nas brasas, o cheiro apetitoso espalha-se no ar”. Continente vol.1
“Em 1890 a matriz de Antares, cuja construção tinha sido iniciada havia vinte anos, foi inaugurada por ocasião da Festa do Divino Espírito Santo, Benjamim Campolargo, Imperador Festeiro, mandou carnear seis de suas reses para dar churrasco ao povo, organizou uma quermesse e fez queimar fogos de artifícios vindos da capital do estado”. Incidente em Antares
“Disse isso, voltou as costas para o cadáver e tornou a sua casa, onde o esperava um assado de paleta de ovelha, que ele comeu com a tranquilidade de um justo”. Incidente em Antares
“Quando o sol já apontava acima dos telhados, Tibério, seguindo um velho ritual, comeu na cozinha o seu pedaço de churrasco gordo e seu naco de linguiça cobertos de farinha de mandioca, sob o olhar entre terno e crítico a cozinheira, a mulata Dráusia, que estava com os Vacarianos havia mais de quarenta anos”. Incidente em Antares
“ – Vi lindas moças – acrescentou, levando à boca com ambas as mãos uma costela de vaca e arranco-lhe com os dentes a carne junto com a pelanca”. Continente vol.1
“Depois da visita do pe. Lara – contava ela – o Cap. Cambará começara a melhorar a olhos vistos. Diziam que o morimbundo se confessara e tomara a comunhão, e que o Corpo de Cristo lhe fora o melhor de todos os remédios. ‘Já fala, já senta na cama e já pediu um churrasco!”. Continente vol.1
“O jantar já está pronto – avisou ela. – Não estou com fome. – Tem um bom churrasco de ovelha, Boli. – Gritou para a outra sala: – Natália pode servir!”. Continente vol.2
“Comeu um churrasco gordo, empanturrou-se de laranjas e bergamotas”. O Arquipélago vol.2
Ode ao churrasco
“No fundo do quintal preparava-se o churrasco: dezenas de espetos fincados em bons nacos de carne estavam colocados sobre um longo valo raso, no fundo do qual luziam braseiros; a graxa derretida caia nas brasas, com um chiado, e uma fumaça cheirosa subia no ar, enuanto duas pretas de vez em quando mergulhavam ramos de pessegueiro dentro dum balde com salmoura e depois aspergiam os churrascos, trazendo os que ficavam prontos para a mesa, onde eram disputados aos gritos. Os homens usavam suas facas, tiravam da cintura ou das botas e com elas cortavam o assado, muitas vezes respingando o rosto com o sumo sangrento da carne. Nas barbas negras de alguns deles a farinha branquejava como geada sobre campo de macegas recém queimado”. Continente vol.1
A linguiça
“À tarde houve cavalhadas e à noite quermesse. Acenderam-se fogueiras onde se assaram batatas doces e linguiças”. Incidente em Antares
“Um cheiro de linguiça frita espalhava-se no ar. Rodrigo sorriu e começou a bater com a mão espalmada no balcão. – Como é, amigo Nicolau, essa linguuiça vem ou não vem?… Juvenal foi. Sentaram-se a uma mesa de pinho, sebosa e sem toalha, e sobre a qual estava um prato onde se enroscava uma linguaca tostada e fumegante, ao lado duma farinheira de pau transbordante de farofa. Rodrigo começou a trinchar a linguiça com alegria”. Continente vol.1
A feijoada
As sobras de carne, a linguiça, as partes do porco criado no quintal enriqueciam o feijão cultivado em casa. Prato substancioso, não importa se no inverno ou no verão, era considerado uma iguaria. Servida com orgulho para convidados e visitantes, que nem sempre se sentiam prazer em degustá-la, principalmente em dias de altas temperaturas.
“No capítulo Hábitos e Tabus Alimentares esses canalhas criticam a maneira como nós comemos em Antares. Prestem bem atenção nessa tirada e me digam se não é coisa de comunista: ‘Os pobres não comem porque não têm dinheiro para comprar gêneros alimentícios. Os remediados comem pouco e mal. Os ricos comem mais e errado’. – O dedo indicador de Vivaldino Brazão percorria a página. – Ah! Aqui está a frase que eu procurava: ‘Durante o forte o verão, nos dias de maior calor, devoram feijoadas completas’. Pois isso é comigo, senhores. Num gesto de boa vontade convidei o professor Martim Francisco para almoçar na minha casa e lhe ofereci uma feijoada. E o ingrato se valeu disso para me ridicularizar”. Incidentes em Antares
“O maj. Vivaldino Brazão, prefeito municipal, convidou-me para almoçar em sua casa. Mal cheguei (um domingo mormacento), o anfitrião me anunciou, iluminado: ‘Vamos ter feijoada completa!’. Meu estômago contraiu-se em pânico. Sorri amarelo. Balbuciei um ‘ah!’ de mal fingido entusiasmo”. Incidente em Antares
“ – Diga à Laurinda que ainda estou vivo. E que ela me prepare uma feijoada completa, com caldo bem grosso, bastante toucinho, linguiça, repolho e batata doce. Ah! E um assado de costela bem gordo”. O Arquipélago vol. 1
“O sol batia de chapa no toldo de palha e a cabana estava quente como um forno. Ana via os irmãos comendo e suando, as caras barbudas e reluzentes, a testa gotejando, as camisas empapadas. O panelão de feijão, com pedaços de linguiça e toicinho, fumegava no centro da mesa, e moscas voavam no ar pesado”. Continente vol. 1
“Entre os pratos prediletos de Licurgo estavam o arroz de carreteiro, o matambre, a morcila e o fervido. Uma vez por semana mandava fazer uma feijoada com bastante toicinho, linguiça e charque, e esfregava as mãos quando via a panela fumegando na mesa. Nessas ocasiões desprezava os outros pratos e comia a feijoada até empanturrar-se. Por fim,‘pra feijoada não sentar mal’, bebia um copo de cachaça”. Continente vol.2
O requinte
“Ali estava uma boa coisa para dizer aos convidados no momento em que lhes servisse a iguaria. Voltou-se para a cozinheira e, mostrando-lhe uma lata de salsichas de Viena. – Bom, Laurinda, lá pelas nove horas tu me botas essas latas em banho-maria. Não te esqueças, sim? Essa coisa tem que ser servida quente”. O Retrato vol.2
“Dom Pepe chegou depois das nove. Como Rodrigo lhe oferecesse caviar e champanha, recusou-os por considerar ambas essas coisas símbolos dos prazeres da alta burguesia. Aceitou, porém, pão simples e vinho tinto, ‘expresiones de la terra y del pueblo’. Sentou-se, um pouco taciturno, e ficou a comer e beber em silêncio”. O Retrato vol.2
“Bento abriu a caixa que continha os queijos e as conservas. Rodrigo acocorou-se junto dela, remexeu a palha com as mãos sôfregas, e foi tirando as latas – patê de foie gras, sardinhas, anchovas, atum – estralando a língua, cheirando os queijos…” O Arquipélago vol.2
A influência alemã
“Jacob Geibel se via numa certa manhã dominical, com guarda-sol aberto, montado num burro que trotava rumo de Nova Pomerânia (…) Começava a peregrinação de todos os domingos. Café com leite, cuca e manteiga de nata doce na casa de Spielvigel. Apfelstrudel no chalé de Frau Sommer”. Continente vol.2
“À hora das refeições andava naquelas salas um cheiro de molho de manteiga, batatas cozidas e apfelstrudel.Frau Schnitzler era uma doceira de primeira ordem, e suas cucas, bolos e tortas eram muito apreciados, principalmente pelos habitantes de Nova Pomerânia, para onde semanalmente ela mandava os produtos do seu forno”. O Retrato vol.1
“Frau Schnitzler aparece, enxugando as mãos no avental, e beija o filho de Rodrigo Cambará em ambas as faces. Floriano lembra-se dos saborosos sanduíches que ela fazia: entre duas grossas fatias de pão de centeio, generosamente barradas com manteiga de nata doce, apertavam-se tiras de presunto cru e rodelas de salame, mortadela e pepino… E a sua cuca de mel? E seu bolo inglês bem tostado, polvilhado de açúcar?” O Arquipélago vol.1
Os doces
Em calda, à base de gemas – herança portuguesa – com frutas da estação, em forma de broinhas ou biscoitos, os doces eram um requinte. A rapadura, por sua vez, rústica, adoçava a boca dos que enfrentavam as guerras e a escassez.
“A esposa do juiz dizia a Bibiana: – Agora, a senhora sabe, quindim gasta muito ovo. Mas o Nepomuceno é louco por quindim’. Continente vol.2
“A Solange é uma doceira de mão-cheia – diz, esfregando as mãos, e com o olhinhos animados duma gula meio infantil. Papos de anjo nadam em calda espessa, crivados de cravos. Os doces de laranja lembram dorsos de elefantes. Os quindins são dum amarelo de Van Gogh nos seus dias de maior alucinação. E a criada traz um flã moreno de leite condensado”. Incidentes em Antares
“ – Fiz uns quindins hoje de manhã – disse – Você quer? O rosto de D. Vanja resplandeceu. – Adoro quindins! São como pequenos sóis, não é mesmo? Ou como medalhões de ouro de algum potentado asiático, não acha? Já de pé, a outra replicou: – Não acho. Para mim, quindim é quindim. O principal é que esteja bem-feito”. O Arquipélago vol. 2
“Como mais um figo e de repente me sinto com dez anos no quintal da casa paterna em Rio Pardo, e moscardos zumbem ao ar, e da cozinha vem um cheiro doce de melado e eu penso, feliz, ‘que bom’ Estão fazendo rapadurinhas de coco”. Incidente em Antares
“Enquanto escrevem com a mão esquerda, para disfarçar a letra – penas de aço sobre folhas de papel quadriculado arrancadas de cadernos escolares – as três manas comem cocadas feitas em casa”. Incidente em Antares
“Quando o vendeiro apareceu, o capitão perguntou: – Tem sobremesa?
– Tem pessegada com queijo.
– Então traga. Gosto de tudo”. Continente vol.1
“Um ano se passou, e eu estava ainda comendo compotas de pêssegos de 35 quando o Gen. Neto proclamou a República Rio-Grandense”. Continente vol.1
“Os pratos foram recolhidos e veio a sobremesa – doce de coco – numa grande compoteira de vidro azul, na forma de uma galinha no choco. Todos gostam de doce de coco? Se não gostarem, tem pessegada, marmelada e figada… Mas todos gostavam”. Continente vol.2
“É curioso – disse uma noite Tio Bicho, mastigando com prazer um pedaço de pessegada no qual havia nacos de frutas inteiros – a gente observar o nascimento de um herói”. O Arquipélago vol.2
“Era agradável sentir no rosto a espuma cremosa e fresca, com uma fragância de limão. Pensou na clara de ovo batida que a Dinda punha em seus doces e teve um súbito, absurdo desejo de comer montanha-russa”. O Arquipélago vol.1
“Zezé pede chá. – Não quer sobremesa? – Obrigadinho, D. Zina, não sou muito de doces. Fala com voz macia levemente trêmula de convalescente. – Olha que hoje temos montanha-russa… – avisa a dona da pensão: Zezé faz um gesto polido: – Não, Dona Zina, muito obrigado… Barata, prontamente, volta-se para D. Zina: – Sou candidato a essa sobremesa que vai sobrar… Tio Couto, rápido: – Eu também! Barata: – Quem pediu primeiro fui eu…Mas eu sou mais velho, tenho mais direito…– graceja Tio Couto. Clarissa está feliz. Acha muita graça nesses dois homens que disputam uma taça de montanha-russa como se fossem crianças. Belmira entra com a bandeja onde se enfileram as taças de doce. As pirâmides de clara de ovo tremulam, com uma ameixa preta na ponta. Barata esfrega as mãos. – Gosto disso que me lambo todo! Amaro pede licença e se levanta. Passa por entre as mesas como uma sombra, sem falar, sem sorrir, e sobe”. Clarissa
Quitandas e pasteis
Nas reuniões das famílias e ao receber visitantes, as quitandas – biscoitos, bolos e salgadinhos – eram servidos como um gesto de acolhida. Um dos petiscos mais apreciados pelos personagens eram os pasteis quentinhos, fritos na hora.
“Vinham pessoas que se limitavam a cumprimentar Rodrigo e retirar-se; na sua maioria, porém, ficavam por muito tempo, tomavam mate e aceitavam um copo de cerveja fresca e comiam bolos e pasteis que Maria Valéria mandara fazer em boa quantidade, especialmente para a ocasião’. O Retrato vol.1
“Não terminou a frase: foi direito ao prato de pasteis que avistou em cima da mesa da sala de jantar”. O Arquipélago vol. 1
“O pe. Atílio Romano tinha diante de si um prato de pasteis, que ia devorando rapidamente, com tal entusiasmo que às vezes chegava a metê-los inteiros na boca. Mastigava com bravura e ao mesmo tempo não queria deixar de falar, porque o dr. Winter, aquele ateu incorrogível, não o deixava em paz. O dr. Winter não se deixou comover pela presença dos pasteis recém saídos da frigideira e que ali estavam à sua frente, nédios, cheirosos, trigueiros, polvilhados com açúcar e canela. Lançou-lhes um olhar frio e tornou a encarar o interlocutor”. Continente vol.2
“Ana entrou no rancho e contou tudo à mãe, que estava junto do fogão, botando no forno uma forma de lara com broa de milho”. Continente vol.1
“É muita bondade sua, sei que estou um caco velho. Mas não vá s’embora ainda. Quero que prove meus bolinhos de polvilho e um licorzinho de butiá. Quem sabe aceita um mate? Só lhe peço que não repare, pois isto é casa de pobre”. Continente vol.1
“D. Quitéria, que mastigava uma broinha de milho – e mais que nunca parecia um pequinês –, ficou pensativa por um instante”. Incidente em Antares
“Flora só apareceu na sala no princípio da festa para cumprimentar os convidados. Retirou-se para a cozinha, de onde ficou dirigindo as negras que serviam croquetes, pasteis, empadas, sanduíches e doces”. O Arquipélago vol. 2
“Imagino quinze crianças de variadas idades correndo e gritando dentro deste casarão num dia de chuva. ‘Estão todos agora na estância, onde costumam passar o verão. Sirva-se desses biscoitos. Recomendo-lhe os biscoitos de coalhada”. Incidentes em Antares
O polvilho
“Luzia tocava cítara e torturava bolivar com sua indiferença, e uma escrava vinha com uma panela de pinhão cozido ou com pratos cheios de bolos de polvilho”. Continente vol.2
“No velório, os homens a princípio estavam meio bisonhos e silenciosos; mas começaram a animar-se aos poucos, à medida que o chimarrão foi correndo a roda e as escravas iam trazendo roscas de polvilho, bolos de coalhada e finalmente licor de pêssego”. Continente vol.2
“Bibiana entrou com uma bandeja cheia de bolinhos de polvilho e saiu a distribuí-los”. Continente vol.2
“Rosinha sabia receber os fregueses, obsequiando-os com um cálice de licor de butiá e com bolinhos de polvilho”. O Retrato vol. 2
A bebida de Baco
“Antônio tivera ocasião de beber o excelente vinho feito pelos colonos açorianos com uva nascida do solo de Rio Pardo!”. Continente vol.1
“No princípio da festa notara-se um silêncio um pouco constrangido. Mal, porém, o vinho começou a encher copos e subir à cabeca dos convivas, elas se puseram a falar mais alto, a rir, a contar histórias, entusiasmados”. Continente vol.1
“E, depois que sorveu o primeiro gole, estalando a língua, degustando bem o vinho, teve vontade de cantar”. Continente vol.2
“Winter notou que o vinho deixava o rapaz com o rosto afogueado e os olhos brilhantes”. Continente vol.2
“Curgo levantou-se, foi até a despensa e voltou de lá com duas garrafas abertas. – Vamos experimentar um vinho feito pelos italianos de Garibaldina – disse”. Continente vol.2
“Atílio Romano bebericava seu vinho, fazendo-o demorar sobre a língua e depois engolindo-o com um vagar sensual. Tornou a encher o cálice. Continente vol.2
“Tornou a encher o copo de vinho e bebeu-o todo dum sorvo só. O melhor que tinha a fazer era embriagar-se para poder participar da alegria geral, para esquecer que a vida para ele não prometia mais nada”. Continente vol.2
“O ar estava cheio de rumor das conversas e do tinido de pratos, copos e talheres. Os homens conversavam animadamente e comentavam, muitos deles, o incidente da tarde. Curgo comia devagar e sem vontade, mas esvaziava em largos goles seu copo de vinho”. Continente vol.2
“ – Ah! – fez Rodrigo de repente – Vou transformar o porão do Sobrado numa boa adega. Já encomendei vinhos franceses, italianos e portugueses. Se há coisa que eu goste na vida, menino, é de uma taça de champanha”. O Retrato vol.1
“ – Não me dou por vencido. Tu me desculpa, mais sou teimoso. Pelas dúvidas, no dia do cometa, vou ficar de prontidão. Me serve um vinho do Porto, Saturno. O ecônomo obedeceu. Chiru apanhou o cálice, ergueu-o no ar, mirou o vinho com olho alegre e depois bebeu-o a goles curtos, intercalados com estalos da língua”. O Retrato vol.1
“Toríbio foi até o quintal e tirou do fundo do poço o balde dentro do qual havia posto ao entardecer uma garrafa de champanha, para refrescar. Voltando para a sala de visitas abriu-a. A rolha saltou com um estampido, bateu no teto e caiu sobrre um vaso de vidro, produzindo um sonido musical. O líquido espumante jorreou com força contra a cara de Rodrigo, escorreu-lhe pelo colarinho e pelo peitilho da camisa”. O Retrato vol.1
“Foi até a cozinha e voltou com uma garrafa de champanha. Fez saltar a rolha, que bateu no espelho e caiu entre as rosas do vaso. O vinho jorrou sobre o tapete. Rodrigo encheu a primeira taça e entregou-a ao coronel. O Retrato vol.2
“Havia pouco, ao receber algumas caixas de vinhos franceses e italianos encomendadas a uma firma de Porto Alegre, Rodrigo transformara um dos compartimentos do porão em adega. Levara o pai a vê-la, mas o único comentário que arrancara dele fora uma série de pigarros de contrariedade. Soube depois que o Velho dissera à cunhada: ‘Esse rapaz é um perdulário. Não sei por quem puxou’. Doutra feita, durante o almoço, Rodrigo abrira uma garrafa de Borgonha. Ao fazer menção de encher o cálice do pai, este o detivera: – Pra mim não. No dia seguinte, vendo o filho abrir uma garrafa de Chianti, franzira o cenho. – O senhor pretende tomar vinho todos os dias?”. O Retrato vol.2
LUIZ FERNANDO VERISSIMO
O autor
Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre em 1936. É filho de Erico Verissimo. Homem de poucas palavras verbais, mas expert em palavra escrita. Apreciador da boa mesa, tem dedicado espaço ao tema da gastronomia em suas crônicas.
Em uma entrevista, Luis Fernando contou que a linguiça com farinha que o capitão Rodrigo Cambará comeu logo que chegou a Santa Fé, na obra O Tempo e o Vento, de seu pai, Erico Verissimo, não serviu apenas para aliviar a tensão que carregava o ambiente da venda do Nicolau naquele dia, mas para despertar nele, então com 11 anos, o ‘gosto pela palavra escrita referente à comida’.
‘Eu podia ver aquela linguiça com farinha. Foi a primeira vez que eu tive a sensação de que a palavra poderia reproduzir a comida, só que com o prazer literário”.
A principal obra de seu pai ajudou Luis Fernando a perceber que não precisava necessariamente de comida para falar de gastronomia.
“Descobri que só com a evocação da palavra eu poderia sentir quase o mesmo prazer.”
A churrasqueira
Na casa de Luis Fernando, o churrasco tão presente na obra do pai, Erico Verissimo, e a mais comum das receitas atribuídas às habilidades masculinas a situação é diferente:
“Preciso fazer uma confissão vergonhosa: lá em casa, quem faz o churrasco é a minha mulher, Lucia. E o pior: ela é carioca.”
“Não sei nem como se põe a carne no espeto”.
As preferências
O escritor revela não ter o dom de cozinhar:
“Só entro na cozinha para saber por que a comida está demorando”.
Apreciador de bons vinhos e boa mesa, costuma frequentar restaurantes aqui e fora do país. Diz não ter vinho de preferência, mas sobre receitas garante:
“Meu prato preferido? Lagosta de qualquer forma”.
Outras preferências
- Peixes
- Frutos do mar
- Cordeiro (gigot e carré)
- Picanha
- Coração de galinha
- Salada de batata
- Galetinho
- Tomate (adora)
- Arroz com molho de carne
- Prefere os assados aos cozidos
Desabafo sobre o ovo
A proibição gastronômica de consumir ovo, até então visto como prejudicial à saúde e enfim absolvido, fez com que Luis Fernando tratasse do tema em uma crônica:
“Eu escrevi essa crônica porque de uma hora pra outra fui privado do ovo. E de repente dizem que o ovo nunca fez mal. Então, escrevi com uma certa revolta”.
“Agora essa. Descobriram que ovo, afinal, não faz mal. Durante anos, nos aterrorizaram. Ovos eram bombas de colesterol. Não eram apenas desaconselháveis, eram mortais. Você podia calcular em dias o tempo de vida perdido cada vez que comia uma gema.
Cardíacos deviam desviar o olhar se um ovo fosse servido num prato vizinho: ver ovo fazia mal. E agora estão dizendo que foi tudo um engano, o ovo é inofensivo. O ovo é incapaz de matar uma mosca.
Sei não, mas me devem algum tipo de indenização. Não se renuncia a pouca coisa quando se renuncia ao ovo frito. Dizem que a única coisa melhor do que ovo frito é sexo. A comparação é difícil. Não existe nada no sexo comparável a uma gema deixada intacta em cima do arroz depois que a clara foi comida, esperando o momento de prazer supremo quando o garfo romperá a fina membrana que a separa do êxtase e ela se desmanchará, sim, se desmanchará, e o líquido quente e viscoso escorrerá e se espalhará pelo arroz como as gazelas douradas entre os lírios de Gileade nos cantares de Salomão, sim, e você levará o arroz à boca e o saboreará até o último grão molhado, sim, e depois ainda limpará o prato com pão. Ou existe e eu é que tenho andado na turma errada. O fato é que quero ser ressarcido de todos os ovos fritos que não comi nestes anos de medo inútil. E os ovos mexidos, e os ovos quentes, e as omeletes babadas, e os toucinhos do céu, e, meu Deus, os fios de ovos. Os fios de ovos que não comi para não morrer dariam várias voltas no globo. Quem os trará de volta? E pensar que cheguei a experimentar ovo artificial, uma pálida paródia de ovo que, esta sim, deve ter me roubado algumas horas de vida a cada garfada infeliz. Ovo frito na manteiga! O rendado marrom das bordas tostadas da clara, o amarelo provençal da gema… Eu sei, eu sei. Manteiga ainda não foi liberada. Mas é só uma questão de tempo”. O Ovo.
Ode ao pudim
Luis Fernando é apaixonado por doces, mas por motivos de saúde não pode consumi-los. Uma de suas preferências é a ambrosia. E outra é o pudim:
“O sentido da vida é o pudim de laranja. O melhor prato do mundo é aquela tigela funda e larga em cima, que depois você inclina para pegar o caldo.”
O Inventor de Sabores
“Se eu pudesse escolher um Outro homem para ser, seria um inventor de sabores para fábricas de sorvetes. Sei que decisões deste tipo são tomadas por frios (no caso, gelados) e impessoais departamentos de marketing de acordo com pesquisas científicas e estratégias de venda, mas nada impede de imaginar que as grandes fábricas de sorvete empreguem especialistas exclusivamente para pensar em novos sabores. Profissionais muito bem pagos cuja única função consiste em, vez por outra, invadir a sala de diretoria e anunciar: – Bolei um novo sabor!
Grande alvoroço. Todos os chefes de departamento são convocados enquanto o inventor do novo sabor escreve sua criação num papel, para não haver o risco de esquecer. Finalmente, com todos reunidos, como uma unidade inteira da fábrica parada e esperando, ela revela a ideia: – ‘Chucruva’! Chocolate por fora, uma camada de crocante e uva por dentro! Aplausos. Vivas. Ele se superou outra vez. Produção e promoção são postas em marcha frenética enquanto o bolador de sabores volta para sua sala, entre tapinhas nas costas, malévolo – só quem está de dieta sabe como dói resistir ao apelo de cada novo sabor cuidadosamente lançado para ser irresistível – e infantil, inocente e calculista. E seria um profissional valorizadíssimo. – Sabe quem é aquele ali? – Quem? – O criador do ‘Nhaque’? – Do quê? – Do ‘Nhaque’. Caramelo, morango, nata e um núcleo de mel e amêndoas. Um clássico. Ele é uma lenda viva no ramo. Acaba de recusar uma proposta milinária da Kibon. – Olhe, ele está de olhos fechados…e sorrindo como um anjo! – Deve estar pensando em um novo sabor”.
Os rejeitados
Alguns ingredientes não agradam ao nosso cronista:
* Miúdos
* Massas
* Salsa (para esta, escreveu uma crônica)
“As pessoas se reúnem em clubes e associações para não serem solitárias nos seus interesses e problemas, ou nas suas manias, mas muitas se resignam à sua singularidade, achando que ninguém mais pode ser como elas. Eu, por exemplo, acreditava que era a única pessoa no mundo que tinha horror a salsinha. Como a salsinha – aquelas coisinhas verdes que vêm nos pratos para enfeite, pois não têm gosto de nada, ou quando têm deixam tudo com o seu gosto – é uma convenção internacional, usada em todas as cozinhas, e se sobreviveu tanto tempo é porque obviamente nunca teve oposição, pensei que era um salsófobo só. Pois descobri uma alma gêmea. O Roberto D’Avila também é contra a salsinha. Com dois já se pode pensar num movimento, embora talvez seja cedo para uma insurreição. Deve haver outros como nós, que nunca entenderam a salsinha ou são visceralmente contra, e que ainda não se manifestaram para não parecerem excêntricos, ou por ignorarem que a sua luta é a de muitos. Manifestem-se. Mandem cartas (para o Roberto). Vamos nos organizar!
Na outra noite eu perdi o sono, como acontece muito, e fiquei pensando: deveria existir uma sociedade dos insones. Como os alcoólatras anônimos, ou grupos que se apoiam mutuamente para perder peso ou deixar de fumar, os insoniosos se reuniriam no meio da noite para se ajudarem a dormir com palestras ou encantações ou, se isto falhasse, trocarem receitas de soníferos ou simplesmente se fazerem companhia até o amanhecer, quando então se dispersariam. Organizado, o movimento dos sem-sono poderia endossar livros chatos (“Altamente recomendado, você não passará da página 27”), dar notas para bares, restaurantes e serviços abertos toda a noite e financiar pesquisas médicas sobre a insônia e o desenvolvimento de produtos só para insones, como lâmpadas para leitura que não incomodem a companheira, ou o companheiro, de cama.
Vou tratar da fundação do MSS. Se encontrar gente que tem insônia e não gosta de salsinha, melhor. Já teremos assunto para várias reuniões”. Vamos Começar.
O JANTAR
O chef
O gaúcho Marcos Livi é considerado o embaixador da cozinha do Rio Grande do Sul no centro do País. Se divide entre os empreendimentos Verissimo, Quintana, Botica, Officina, Napoli Centrale, Hamburgueria C6, em São Paulo, e o Parador Hampel, aqui em São Francisco de Paula. Criativo e engajado em defesa da boa mesa foi um prazer tê-lo como parceiro nesse jantar em homenagem aos Verissimo. O chef Livi contou com a ajuda dos chefs Zé Maria e Elton Jance.
Na Chegada
“Andava no ar um cheiro familiar de pão quente”. Erico Verissimo
Snack de chips de raízes
Bolinho de feijoada, aipim com linguiça campeira
Pão caseiro com manteiga de galpão
Entrada
“Os tristes acham que o vento geme; os alegres acham que ele canta”. Luis Fernando Verissimo
Atum selado, batata com aioli de crem e pastel de caviar
Primeiro prato
“Descobri outro dia que o Quintana, na verdade, é um anjo disfarçado de homem. Às vezes, quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora”. Erico Verissimo
Arroz de Carreteiro Chinês e Pancs (Costela bovina assada lentamente por 8 horas no fogo de chão, arroz caldoso, abóbora cabotiá tostada, ovo, couve, tomate, linguiça campeira, alho, cebola). Esse prato representou o hábito de Erico de preparar um prato conhecido na família como arroz de carreteiro chinês. O chef Livi resolveu dar espaço ao lúdico serviu os ingredientes em um prato único para cada mesa. Os integrantes da mesa montavam seu carreteiro com os ingredientes que lhes aprouvesse, mas com duas condições criativas: com hashis (os pauzinhos chineses) e em folhas de gengibre e de peixinho, duas pancs (plantas alimentícias não-convencionais).
Prato principal
“Beba vinho para o espírito e para a boa digestão, beba vinho na festa e beba vinho na solidão, beba vinho por cultura ou por educação, beba vinho porque…Bem, você encontrará uma razão”. Luis Fernando Verissimo
A chegada dos produtos gourmet, presentes em O Tempo e o Vento, de Erico, e o paladar apurado de Luis Fernando, foram representados com a chegada da combinação de foie gras, tornedor e batata doce defumada.
Quase lá
“O tempo faz a gente esquecer. Há pessoas que esquecem depressa. Outras apenas fingem que não se lembram”. Erico Verissimo
Queijos, figada e pessegada pelotenses começaram a adoçar o paladar.
Sobremesas
“Se eu pudesse escolher um outro homem para ser, seria um inventor de novos sabores para as fábricas de sorvete”. Luis Fernando Verissimo
Tuille de queijo, doce de leite em duas texturas, flor de sal e sorvete de chimarrão
Na saída
Um mimo a mais, com o delicado café de coador, passado nesses bules lindos, que logo viraram objeto de desejo
Quindim: uma apresentação de causar inveja.
Licor de Butiá: para encerrar a noite de delícias.
Agradecimentos
Não posso deixar de agradecer as parcerias da Hereford Carnes Certificadas, da Vinícola Guatambu Estiancia de Vinhos, da Fil Cerveja Artesanal, que compuseram e harmonizaram o cardápio. E os carinhos, mais que especiais, de Maira Ritter e Tati Feldens.
Desde que surgiu o projeto Da Estante à Mesa: Literatura e Gastronomia que Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, estava entre as obras que gostaria de apresentar em um dos jantares. E foi com grande alegria que vi o chef Luciano Lunkes abraçar essa ideia comigo. O jantar, no Instituto Ling, foi dia 20 de junho de 2017. A ideia para definir o cardápio foi escolher pratos que representassem a simbologia de cada personagem na obra do autor espanhol. Os pratos se transformaram em mais uma representação, unindo a literatura e a boa mesa.
Gostaria de começar fazendo referência à apresentação com que Cervantes dá início a aventura do Cavalheiro da Triste Figura:
“Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar, vivia, não há muito tempo, um desses fidalgos que usam lança em hastilheira, a adarga antiga, cavalo magro e galgo corredor. Panelada de algo que era mais vaca do que carneiro, guisado na maioria das noites, ovos fritos com torresmo, aos sábados, lentilhas às sextas-feiras, filhote de pombo bravo, como acréscimo aos domingos – consumiam três quartos de sua fazenda”. Livro1, cap I
A obra
Dom Quixote de La Mancha foi a primeira novela moderna e a última novela medieval. Narra as loucas e cômicas aventuras e desventuras de um senhor rural de Castilha, na Espanha, que acredita ser um cavaleiro andante da Idade Média e que busca sua dama Dulcineia, acompanhado por seu fiel escudeiro, Sancho Pança, e os companheiros de viagem: o cavalo Rocinante e o jumento Ruço. Influenciado pelos livros que lê e por seu delírio julga-se um herói e sai em busca de aventuras e Justiça. Dom Quixote é considerado o primeiro anti-herói da literatura universal, o primeiro que personifica todos os defeitos e virtudes dos homens e não uma delas. É dito o primeiro homem moderno, que exige respeito a sua liberdade e dignidade.
O autor
Miguel de Cervantes nasceu em 1547, em Alcalá de Henares, na Espanha, e morreu pobre, em Madri, no dia 22 de abril de 1616, cinco meses após a publicação da segunda parte de Dom Quixote. Sua vida foi tão ou mais aventureira que a de seu personagem. O escritor fugiu da Espanha após uma condenação duvidosa à revelia. Participou de uma batalha naval na qual sua mão ficou inválida. Foi capturado por piratas, ficou 5 anos em cativeiro em Argel. Foi preso pela falência de um banco onde havia depositado impostos que arrecadou. Teve uma vida familiar complicada e empobreceu.
O livro
* Cervantes teve dificuldade de editar a primeira parte de Dom Quixote.
* Importante figura literária da época considerou Cervantes um péssimo escritor e o Dom Quixote, uma bobagem.
* Em 1605, a obra foi impressa e se tornou um sucesso absoluto.
* Em 1614, surgiu uma segunda parte falsa, assinada por Alonso de Avellaneda, em que Quixote aparece como um maluco vulgar, destituído do alto sentido idealista com que Cervantes o transfigurou, mas não teve grande repercussão.
* Em 1615, finalmente saiu o verdadeiro segundo volume.
A mesa em Quixote
* Romance tem 200 personagens, 160 peças musicais e 150 citações de cozinha.
* Na obra, a cebola é mencionada 10 vezes e o pão, 65.
* O vinho aparece 40 vezes, muitas delas acompanhando o pão.
* Tanto na obra, como na Espanha de 1605, à exceção da aristocracia e dos religiosos – que comiam em excesso, desfrutavam de pratos elaborados e vinhos caros – a maioria da população comia pouco e mal, muitos viviam de sobras dos conventos e da caridade. O mesmo contecia com fidalgos pobres, como Dom Quixote, que tinham uma dieta minguada, caracterizada pelo odor de alho cru.
* Sancho Pança sofre a eterna fome dos humildes na sociedade do Século do Ouro na Espanha.
A fartura dos de posse
“A primeira coisa que se ofereceu à vista de Sancho foi, cravada no espeto de um tronco de olmeiro, uma novilha inteira; no fogo em que devia ser assada ardia um monte de lenha de médio tamanho e as seis panelas, porque eram seis tinas, comportando cada uma um mundo de carne. Assim, tragavam e encerravam em si carneiros inteiros, sem deixá-los à vista, como se fossem pombinhos. As lebres já sem pele e as galinhas depenadas que se viam penduradas nas árvores, à espera de se sepultarem nas panelas, eram sem conta; infinito o número de aves e peças de caça de diversos gêneros, também penduradas das árvores para que o ar as esfriassem. Contou Sancho mais de sessenta odres, cada um com capacidade superior a duas arrobas, e todos cheios, segundo depois se viu, de generosos vinhos. Havia rumas de pão branquíssimo,como costuma haver montes de trigo nas eiras. Os queijos, postos como ladrilhos empilhados formavam muralha, e duas caldeiras de azeite, maiores que tinas de tinturaria, serviam para frigir massas, que com duas valentes pás eram tiradas fritas e mergulhadas em outra caldeira de mel preparado, nele ali perto se achava. Os cozinheiros e cozinheiras passavam de cinquenta, todos limpos, todos diligentes, todos alegres. No dilatado ventre da novilha estavam doze tenros leitõezinhos, que, cozidos por cima, serviam para dar-lhes sabor a amaciá-la. As especiarias, em grande diversidade, parecia não terem sido compradas a peso de libra, e sim de arroba, estando todas franqueadas numa grande arca. Em suma, o aparato das bodas era rústico, mas tão abundante que podia dar sustento a um exército”. Livro 2, cap XX
A escassez
“Puseram-lhe a mesa à porta da venda, por ser mais fresco, e lhe trouxe o hospedeiro uma porção de mal temperado e pior cozido bacalhau, e um pão tão negro e sujo como suas armas”. Livro 1, cap II
“– Aqui trago uma cebola, um pouco de queijo e não sei quantos pedaços de pão – disse Sancho –; mas não são manjares que sirvam tão valente cavaleiro como vosmecê”. Livro 1, cap X
“Mano, este dia não é daqueles em que a fome tem jurisdição, graças ao rico Camacho. Apeai-vos e olhai se há por aí uma concha, escumai uma galinha ou duas e bom proveito vos façam”. Livro 2, cap XX
Comidinhas
“Aquele pratarraz que está lá adiante fumegando parece-me ser um ensopado e, pela diversidade de coisas que em tais ensopados há, não poderei deixar de topar alguma que me dê gosto e proveito”. Livro 2, cap. XLVIII
“Matem-me, senhores, se o autor deste livro que vosmecês têm, quer que não comamos boas migas (sopas de pedaços de pão) juntos”. Livro 2, cap. LIX
“Temos aqui notícia, bom Sancho, de que sois tão amigo de manjar branco (petisco feito de peito de frango de galinha, farinha de arroz, leite e açúcar, popular, vendido nas ruas de Barcelona) e almôndegas que, se vos sobram, os guardais no peito para o dia seguinte”. Livro2, cap. LXII
“Olhai, senhor doutor, doravante não cuides de dar-me de comer coisas regaladas, nem manjares delicados, porque será tirar meu estômago de seus eixos. Ele está acostumado a cabra, a vaca, a toucinho, a nabos e a cebolas…O que o mestre-sala pode fazer é trazer-me estas chamadas paneladas de guisado, que quanto mais se misturam melhor cheiram”. Livro 2, Cap XLIX
Os caminhantes e seus alforjes
“Todos traziam alforjes que, sem exceções, pareciam bem providos, pelos menos de coisas apetitosas e que a duas léguas de distância trazem água à boca. Estenderam-se no solo e fazendo da relva toalha, puseram sobre ela pão, sal, facas, nozes, fatias de queijo e ossos de presunto sem carne, que, se não se podia mastigar, muito bem podiam ser chupados. Puseram ainda um manjar negro, que dizem chamar-se caviar e é feito de ovas de pecado, grande incitador da sede. Não faltaram azeitonas, embora secas e sem recheio algum, mas saborosas e conservadas. O que, porém, mais campeou no campo daquele banquete, foram seis odres de vinho, cada um tirou o seu de seu alforje”. Livro 2, cap. LIV
Dom Quixote
* Idealista e delirante
* Incapaz de diferenciar a realidade do mundo ficcional
* Seguidor fiel de regras, defensor de princípios morais
* Alto e delgado
* Ausente de erotismo e sensualidade
* Para ele, o amor é platônico, como o dedicado à imaginária Dulcineia Del Tromboso
* Anoréxico, come e dorme muito pouco, o que contribui para seus delírios
* Em seus delírios, acredita que os cavaleiros devem comer apenas uma vez ao mês
* Incapaz de ver a comida como algo simbólico, vê valor apenas na nutrição da alma.
* Nutre-se espiritualmente
A frugalidade do Cavaleiro da Triste Figura
“ – Vosmecê, em verdade – disse Sancho – é escudeiro fiel e legal, do pé para a mão, magnífico e grande, como demonstra esse banquete, que, se cá não chegou por artes de encantamentos, pelo menos o parece; e não como eu, mesquinho e mal-aventurado, que só trago em meus alforjes um pouco de queijo, tão duro que com pode se machucar um gigante. Fazem-lhe companhia quatro dúzias de alfarrobas e outras tantas avelãs e nozes, graças à estreiteza de meu amo e à opinião, que tem, e ordem, que guarda, de que os cavaleiros andantes não se devem manter e sustentar senão com frutas secas e com ervas do campo”. Livro 2, cap XIII
Sancho Pança
* Realista, racional, o bom senso
* Ignorante, estúpido e ao mesmo tempo esperto, prático e bem humorado
* Baixinho, gordinho e glutão
* Tem como única consistência o materialismo, o interesse por comida, o desejo e o conforto físico
* Nutre-se de coisas terrenas
* Quer dinheiro, comida e poder
* Servil
A gula
“ Tudo fitava Sancho Pança e, quanto mais contemplava, mais se afeiçoava a tudo. Primeiro, cativaram-no e renderam-lhe o desejo as panelas, das quais tomaria, com a melhor gana, uma boa caçarola. Em seguida, conquistaram-lhe a vontade as odres e, por fim, as frutas da frigideira (massas fritas açucaradas), se frigideiras se podem chamar tão bojudas caldeiras. Assim, por não poder suportar mais nem estar em sua mão fazer outra coisa, chegou-se a um dos solícitos cozinheiros em, com cortrses e famintas razões, rogou-lhe licença para molhar um bocado de pão numa daquelas panelas”. Livro 2, cap XX
Dulcineia
* Aldonza Lorenzo, simples camponesa, transformada pela imaginação delirante na bela Dulcineia Del Toboso
* Cheira à cebola e a alho (comparada a suor masculino)
* Feia e vulgar para Sancho e protótipo da beleza para Quixote
* Objeto de amor desinteressado, idealizado, ilusório
Dulcineia por Sancho Pança
“Devia-vos bastar, velhacos, o terdes transformado as pérolas dos olhos da minha senhora Dulcineia em cebolas remelosas, os seus cabelos de ouro puríssimo em cerdas de rabo de boi ruivo, e mudado enfim as suas formosas feições em feições disformes, sem lhe tocardes no cheiro, que por ele ao menos adivinhássemos o que estava escondido naquela feia cortiça, ainda que, para dizer a verdade, eu sempre a vi formosa, dando-lhe realce à beleza um lunar que tinha sobre o lábio do lado direito, à moda de bigode, com sete ou oito cabelos louros, com fios dourados, e da largura de mais de um palmo”. Livro 2, cap XX
Rocinante
* Nome vem de rocim, cavalo fraco e pequeno
* Desengonçado, magricelo
* Companheiro de Dom Quixote nas aventuras e nos sofrimentos
* Tem mais força que a maioria dos personagens da trama
* Enfrenta a fome com o amo
* Por vezes, é quem conduz o anti-herói, se rebela contra o cavaleiro
Dois olhares sobre Rocinante
“Disse logo ao hospedeiro que tivesse muito cuidado com o cavalo, porque era o melhor animal que comia pão no mundo. Mirou-o o vendeiro, e não o julgou tão bom como Dom Quixote proclamara, nem pela metade; acomodou-o, todavia, na cavalariça e volveu a receber ordens do hóspede, o qual estava sendo desarmado pelas donzelas…” Livro 1, cap I
Ruço
* Não é o nome do burro, e sim a definição da cor dele
* Companheiro de Sancho Pança
* Simboliza a menor importância do amo
* Representa a passividade, a subservência
* Paciente
Os díspares Ruço e Rocinante
“Agradeceu-lhe muito Sancho, beijando-lhe outra vez a mão e a orla da cota de armas e ajudando-o a subir no Rocinante. Em seguida, montou no asno e principiou a seguir o amo, que, a passo largo, sem se despedir nem falar mais com as senhoras do coche, penetrou num bosque que havia ali perto. Acompanhava-o Sancho a todo o trote do jumento; mas caminhava tanto o Rocinante, que, vendo-se ficar para trás, teve que gritar em altas vozes, para que o amo o esperasse”. Livro 1, cap XX
O chef
Luciano Lunkes é harmônica, tem acorde, valoriza cada nota de sabor. Gaúcho de Montenegro, com a exigência de sua origem alemã, é detalhista, dedicado e preciso. Mesmo que esteja dividido entre duas paixões: a gastronomia e a música. Formado em Regência pela UFRGS foi para a Hungria estudar. Lá, se descobriu cozinheiro. Em Nova York, buscou formação no The French Culinary Institute e foi personal chef de Donatella Versace. De volta ao Rio Grande do Sul, une a regência e a boa mesa. É doutor em Memória Social e Bens Culturais.
O JANTAR
Para o preparo do cardápio, o chef contou com o auxílio da chef Aline Bonnamin. Confira as delícias que compuseram o menu do jantar.
Amouse buche
Tapas à Galope
Rocinante e Ruço
* Almondeguitas de paella
* Mini mil-folhas de batata, queijo manchego e tomilho
Os dois são personagens de menor importância, assim como os tapas são secundários em uma refeição. Os ingredientes rementem à cultura gastronômica da Espanha, como a paella, as batatas e o queijo manchego, da região de Dom Quixote.
Entrada
Dom Quixote
Creme de garbanzos (grão-de-bico), fondue de boursin (queijo de cabra) e cogumelos salteados, pão de tinta de lula e nozes. O pão de tinta de lula e nozes simboliza o pão escuro servido a Dom Quixote, mas também é referência às pedras onde o cavaleiro costumava descansar a triste figura.
Dom Quixote pende para o espiritual, para o idealismo, para o delírio. Aqui, um prato vegetariano é uma representação: a presença do cogumelo (alimento da floresta) reforça a ideia do espiritual e sugere também o lado delirante do Cavaleiro da Triste Figura; o grão-de-bico e o pão faziam parte da dieta do personagem e reforçam o conceito de espiritual. O queijo de cabra faz referência ao lado pastorial, quase religioso.
Principal
Sancho Pança
Barriga de porco marinada em salmoura de especiarias e assada lentamente e escabeche de maçãs e couves. A barriga de porco e o palito de torresmo tinham o sabor salgado e a gordura equilibrados com a escabeche de maçãs
Sancho não abdicou das coisas terrenas, dos desejos, dos prazeres. Ao contrário, sucumbe a eles. Ele nasce, vive e morre pela barriga. Para ele, a gula está acima da razão, do ideal, da elevação espiritual, tão presentes em Quixote. O porco é a carne de excelência da Europa cristã (que condena os prazeres, mas os liberta pela confissão). Representa bem os impulsos humanos tão visíveis em Sancho. A carne de porco é considerada pouco nobre, destinada aos humildes, de pouco recursos, o que também simboliza Sancho.
Para trazer algo doce, para satisfazer o lado infantil de Pança, e levemente ácido para contrastar com a gordura da barriga, daí vem a maçã, que simboliza a vitória das tentações, do mundano.
Sobremesa
Dulcineia del Toboso
Churros ao pó de cardamomo com molho de dulce de leche e sorvete de cebola carameladas, laranja e jerez, anel de cebola ao mel, vinho do Porto e pistaches. Representações da cultura gastronômica da Espanha, o churros e o doce de leite ganham uma parceria inusitada para sobremesas: sorvete de cebola e anéis de cebola.
Dulcineia é uma ilusão, não é linda, nem feminina e nem doce. Cheira a suor, cebola e alho. Para mostrar esses contrastes, o sorvete de cebolas carameladas ao licor de laranja. O anel de cebola representa a aliança espiritual, o comprometimento de Dom Quixote com essa ilusão. O cardamomo dos churros representa o lado árabe da península ibérica e a trajetória pessoal de Cervantes, que viveu um tempo no Oriente. Da mesma foram, o churros, o doce de leite e as laranjas dialogam igualmente com a cultura espanhola. Um pé no doce, um pé no salgado, uma sobremesa híbrida, meio ilusória como Dulcineia.
O vinho
“Sancho também não falava; ia comendo bolotas (fruto do carvalho) e visitando amiúde o segundo odre, que os cabreiros haviam pendurado num sobreiro, para refrescar o vinho”. Livro 1, cap XI
“Não será bom, senhor escudeiro, que tenha eu um instinto tão grande e tão natural em conhecer vinhos que, se qualquer me dão a cheirar, logo lhe acerto com a pátria, a linhagem, o sabor, a safra e as voltas que há de dar, com todas as circunstâncias inerentes ao vinho”. Livro 2, cap. XIII
A bebida e Sancho Pança
“Em verdade, senhora – respondeu Sancho – que na minha vida tenho bebido malícia: com sede bem poderia ser, porque não tenho nada de hipócrita; bebo quando tenho gana, e quando não a tenho; e quando me dão, para não parecer melindroso e malcriado”. Livro 2, cap. XXXIII
“E, levantando-se, voltou daí a pouco com uma grande botija de vinho e um empadão de meia vara de comprimento, sem exageros; pois era feito com um coelho branco tão grande que Sancho, ao tocar a iguaria, julgou que se gastara no recheio de um bode, e não um cabrito”. Livro 2, cap. XIII
A receita
Para representar as rochas onde Dom Quixote costumava se recuperar depois das muitas surras que levava, o chef criou os pães de tinta de lula. Se quiser tentar preparar em casa, aí vai a receita
Ingredientes
150ml de água
4 filézinhos de anchovas
2 colheres (chá) de mel
8g de fermento biológico seco
3 colheres (sopa) de azeite de oliva extravirgem
4 sachês de tinta de lula
230g de farinha de trigo
1/2 xícara de nozes picadas
Como Fazer
- Em uma panela, misture a água, o óleo de oliva, as anchovas e o mel.
- Aqueça até a mistura ficar morna.
- Acrescente o fermento biológico seco e deixe descansar, coberto, por 10min.
- Em uma vasilha, coloque a farinha, forme um monte e abra uma cavidade no meio.
- Coloque ali a tinta de lula e a mistura de fermento.
- Misture e sove a massa até que fique elástica e soltando das mãos.
- Ponha em uma vasilha untada, cubra e deixe crescer até dobrar de volume.
- Abra a massa deixando com 3cm de altura.
- Distribua as nozes e sove novamente.
- Divida em 8 pedaços e modele no formato de pequenas rochas.
- Disponha em uma forma untada.
- Cubra e deixe crescer novamente até dobrar de volume.
- Pincele com azeite de oliva.
- Leve para assar em forno preaquecido, a 190 graus, por cerca de 25min.
Notas
* O ideal é servir os pãezinhos mornos.
A cada nova viagem pelo Brasil, aumenta minha convicção de que nós, brasileiros, precisamos conhecer melhor nosso país. Esse conhecimento, com certeza, fará crescer o orgulho por nossa cultura e tradições. É claro que é importante considerar alguns fatores que dificultam o interesse pelo turismo interno: as distâncias são longas, as passagens aéreas são caras, os preços de hospedagem e alimentação são altos. Viajar para a Amazônia é mais caro do que ir a Miami.
Isso precisar mudar. E não adianta os governos estaduais apenas publicarem anúncios mostrando as belezas naturais brasileiras. O que precisamos é de uma mudança nos preços. É o incentivo para que os turistas locais, e não só os estrangeiros, conheçam a imensidão de atrações que temos a oferecer. A começar por nosso cozinha.
Os chefs internacionais já descobriram o valor dos ingredientes e da tradição culinária brasileira. Não é à toa, que eles têm vindo cada vez com mais frequência ao país. Alguns conhecem muito bem a Amazônia, enquanto a maioria de nós nem cogita inclui-la em roteiros de férias. Não sabem que uma ida a Belém para o Festival Ver-o-Peso é capaz de mudar a maneira de verem a mesa nacional.
É urgente que conheçamos e passemos a valorizar o tucunaré, o pirarucu, o filhote, tanto quanto o foie gras. É importante que provemos e aprovemos as frutas típicas de cada região, como o jambo, a jaca, a mangada, o cacau, o bacuri, o cupuaçu. Enquanto importamos queijos franceses e italianos, os chefs vêm em busca do queijo de Marajó e do Serra da Canastra. Enquanto o brasileiro prefere a vodca, os estrangeiros se encantam coma cachaça e a caipirinha. É claro que precisamos de mais técnica, de mais de um Alex Atala para levar a bandeira de nossa gastronomia. Mas, primeiro, precisamos ter orgulho do Brasil e dessa cozinha tão plural, como é a brasileira.
Dias cinzentos e meio friozinhos, e logo me ponho a sonhar com bolinhos de chuva quentinhos e envoltos em fina camada de açúcar com canela. A impressão que me acompanha sempre é de que dias chuvosos ou nublados pedem com urgência uma comidinha daquelas bem gordinhas. Fico com vontade de comer feijoada, de tomar chocolate quente e de comer bolinho frito. Duvido que alguém acorde com um desejo louco por salada. No inverno, salada é quase obrigação, jamais um prazer.
Quando eu era adolescente, minha mãe costumava fritar uns bolinhos recheados com rodelas de banana ou pedacinhos de queijo Minas. Para acompanhar, nossa preferência era por café preto, passado em coador de pano e com açúcar. O açúcar era acrescentado à água, e a mistura ia para o fogo até a chaleira começar a chiar. O perfume que invadia a casa, ao coar o café no coador é lembrança de infância, por isso não abro mão. Bolinho de chuva, então, é pecado que confesso sem culpa. Por falar nisso, não deu vontade de correr para a cozinha e preparar uma porção deles?
2 xícaras de farinha de trigo Para polvilharBolinho de chuva
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Ingredientes
2 colheres (sopa) de açúcar
1 pitada de sal
1 colher (sopa) de fermento em pó
2 colheres (sopa) de manteiga em temperatura ambiente
1 xícara de leite
1 ovo
raspas de limão ou laranja (opcional)
Açúcar
CanelaComo Fazer
Já deve ter acontecido com vocês: a gente viaja, visita lugares turísticos e restaurantes interessantes, degusta bebidas típicas e está voltando para casa, feliz com as experiências vivenciadas. Aí, ao lado ou em lugar próximo, senta o exibicionista. Aquela figura que adora se gabar das viagens que fez, das coisas que comprou e do que viu. Tudo muito melhor do que o dos outros.
Ele foi a lugares mais legais, comprou ingredientes inesquecíveis e provou comidas inigualáveis. E o papo começa sempre com: “quando eu fui a…”, “minha mala veio cheia de…”, “no Brasil não tem nada igual”, “como você não foi?…”. “lá era muito melhor, você perdeu de …”.
Vamos combinar: não tem coisas mais chata do que participar de almoço, jantar, evento ou viagem e ter que ouvir as gabolices (eta, palavrinha velha) dos outros. Exibicionismo parece ser a palavra do momento, e as redes sociais contribuem e muito pra isso. É um tal de mostrar como eu como bem, bebo melhor e vou a lugares chiques. Sabe quando alguém coloca uma selfie no Facebook só para receber comentários do tipo ‘linda”, “maravilhosa”? É mais ou menos assim. Acho que as pessoas deviam curtir mais suas experiências e até compartilhá-las, mas sem chatices. Afinal, quem quer conviver com chatos?
Tenho inveja dos ingleses. Explico: eles são reconhecidos como extremamente pontuais. Os atrasos, para eles, são imperdoáveis. Já a maioria de nós, brasileiros, pensa que pode se atrasar meia hora, uma hora, e que todos devem esperar. Ou pior: acreditamos que as coisas não vão mesmo começar na hora, que os horários são elásticos. E nisso temos um pouco de razão.
Costumo me irritar com atrasos. Afinal, se um jantar está marcado para as 20h, é para começar nesse horário. O que quer dizer que os convidados devem estar no local pelo menos 15 minutos antes. Por aqui, o hábito é chegar a partir das 20h30min ou até às 21h. O agravante é que virou um costume nacional ter uma tolerância exagerada, que pode chegar a mais de uma hora de espera, penalizando quem é pontual.
Temos que aprender com os ingleses. Os atrasados é que devem mudar, e não tornar rotina que os pontuais esperem por quem não cumpre horário. Pronto, desabafei!
A melhor lembrança que tenho da Bahia é de seus aromas. O perfume do caju secando ao sol, deixando escuras as encostas de Morro de São Paulo e se transformando em passas que desmanchavam na boca, numa doçura que mantinha bem longe aquele travo natural da fruta in natura. Sem falar no defumado das castanhas queimadas na brasa para estalar entre os dentes de turistas encantados com tanta crocância.
Um cheiro forte e desafiador de mangaba madura, de manga pisada e esquecida apodrecendo pelas ladeiras do Pelourinho, o odor nauseabundo de peixe frito nas carrocinhas de rua de Salvador, sem falar das carnes expostas no Mercado Modelo.
Em Ilhéus, o perfume da paixão: do cacau ao chocolate. A doce fragrância, desconhecida e ao mesmo tempo tentadora, da fruta recém partida. O acre da amêndoa sendo torrada para revelar o aroma familiar e apreciado do chocolate em estado líquido, que desafiava a chocólatra em resistir a passar o dedo nas bordas escorridas com a massa escura.
Na entrada surpreendente no restaurante Amado, ali ao lado do Elevador Lacerda, com o ambiente tomado pelo cheiro das moquecas e da farofa de banana da terra.
Em Arembepe, a lagosta afogada em manteiga preparada pelo pescador que a trouxe direto das pedras ainda viva. Do suco de graviola que fazia a alegria das manhãs ou da água de coco verde refrescado no rio quase ao lado do mar.
De Porto Seguro, a lembrança é de bobó de camarão, de xinxim de galinha com muito amendoim torrado por cima, do coentro que refresca qualquer receita. Mas também da jaca madura, mole, que se esborracha no chão e se transforma de aroma em odor quando abandonada ao sol quente.
Antes mesmo que o dia amanheça completamente, é possível ouvir os pássaros alvoroçados, com cantos diversos em homenagem a mais um dia que promete ser de sol e calor.
O verão, que a tantos atormenta, é minha estação predileta. Parece aquecer não apenas o corpo, mas a alma. A pele ganha tons dourados, há desfiles de roupas casuais, leves e coloridas.
É uma delícia percorrer os parreirais e sentir o aroma doce de uva madura. Aplacar o calor com uma taça de espumante gelado e se deliciar com pães ainda mantidos sobre as palhas de milho em que foram assados, queijos, salames e geleias produzidos ali na Serra por mão calejadas pelo roçar das enxadas.
A toalha xadrez, estendida à sombra, autoriza um breve descanso, uma conversa animada e risadas sinceras. O chapéu de palha volta à cabeça, como um elmo que protege contra o implacável sol. E novamente a colheita é retomada, num trabalho cuidadoso e sincronizado como pede a época da vindima.